3. Os créditos e os credores na Rec. Judicial
3.2. Créditos não sujeitos a Recuperação Judicial (Exceções)
A Lei 11.101/2005 estabelece como regra geral (1), que todos os créditos existentes na data do pedido de recuperação judicial, vencidos ou não, estão sujeitos aos seus efeitos. No entanto, o legislador criou importantes exceções a esta normativa, visando especialmente proteger credores que possuem garantias onde a propriedade do bem é mantida a seu favor. A seguir passamos a apresentar as principais características de cada uma das modalidades de garantia excluídas dos efeitos da recuperação judicial:
Alienação fiduciária: A alienação fiduciária caracteriza-se como modalidade de garantia onde ocorre a transmissão da propriedade do bem ao credor, restando ao devedor ou terceiro garantidor, apenas propriedade indireta e a posse do bem alienado. A propriedade fiduciária, no entanto, possui natureza resolúvel, de modo que, ocorrendo a integral liquidação da dívida pelo devedor, a propriedade do bem é automaticamente revertida para o devedor fiduciante ou terceiro garantidor. Este então, passa a ter a propriedade plena do bem. Em contrapartida, havendo o inadimplemento da obrigação, o credor fiduciário passa a ter o direito de consolidar a propriedade do bem a seu favor, afastando o devedor ou terceiro garantidor do direito de posse sobre este.
Em caso de alienação fiduciária de bens móveis, sendo insuficiente o valor do bem para cobrir a totalidade da dívida, o saldo devedor remanescente poderá ser habilitado na recuperação judicial como crédito quirografário. Já em relação aos imóveis alienados fiduciariamente, qualquer valor que exceda a dívida garantida não poderá ser cobrado do devedor, conforme determina o artigo 27, parágrafo 5º, da Lei nº 9.514/1997.
Cessão fiduciária de recebíveis: Inseridos dentro do contexto da alienação fiduciária, os contratos de financiamento que incluem a cessão fiduciária de recebíveis são classificados como extraconcursais, isto é, não estão sujeitos aos efeitos da recuperação judicial. Conforme o entendimento consolidado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), é importante ressaltar que não é exigido que o contrato especifique os títulos objeto da cessão, sendo possível, inclusive, que os títulos representativos do crédito cedido sequer tenham sido emitidos. Portanto, de acordo com essa interpretação do STJ, quaisquer contratos que contenham cláusula de cessão fiduciária de recebíveis são excluídos dos efeitos da recuperação judicial.
Reserva de domínio: Nos contratos com reserva de domínio, ocorre a venda de um bem móvel no qual o vendedor entrega a posse imediata ao comprador, enquanto a transferência da propriedade permanece condicionada ao pagamento integral do valor acordado. Este mecanismo assemelha-se à alienação fiduciária, na medida em que o credor mantém a propriedade do bem até a quitação total da dívida. Em caso de inadimplência, o credor tem o direito de reivindicar a posse do bem em face do comprador/devedor.
Venda de imóvel com cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade: Credores detentores de contratos de venda ou promessa de venda de imóveis, inclusive incorporações imobiliárias, com cláusula de irrevogabilidade e irretratabilidade também não se sujeitam aos efeitos da recuperação judicial. Estas cláusulas, na prática, acabam conferindo direito real sobre o imóvel, possibilitando a adjudicação compulsória do bem pelo vendedor/credor em caso de inadimplência.
Arrendamento mercantil: Diferentemente de um contrato de financiamento, com o qual é frequentemente confundido no Brasil, o arrendamento mercantil, ou leasing, caracteriza-se por ser uma locação que oferece ao arrendatário a opção de compra do bem. Neste contexto, em situações de inadimplência, a empresa arrendadora mantém o direito de requerer a devolução do bem, uma vez que permanece sua proprietária. Importante destacar que, se a opção de compra for exercida já no início do contrato, mediante o pagamento do Valor Residual Garantido (VRG) durante o período de locação, em caso de ocorrer uma rescisão antecipada com a devolução do bem, o montante já pago a título de VRG deve ser considerado como crédito a favor do arrendatário.
Adiantamento de contrato de câmbio: O adiantamento de contrato de câmbio para exportação envolve a antecipação, em moeda nacional, de valores que uma empresa exportadora brasileira tem a receber em moeda estrangeira em data futura, provenientes de contratos de exportação já executados ou a serem executados. Neste contexto, os valores antecipados não estão sujeitos aos efeitos da recuperação judicial. No entanto, no que diz respeito aos juros gerados por essas operações, há um entendimento jurisprudencial que determina que tais valores devem se submeter a recuperação judicial.
Ato cooperativo: Os atos cooperativos realizados com a finalidade de alcançar os objetivos estatutários das cooperativas, quando realizados entre a cooperativa e seus associados, não estão sujeitos aos efeitos da recuperação judicial. Essa exclusão abrange os créditos decorrentes de operações realizadas diretamente em benefício dos associados e que estão alinhadas com a missão fundamental da cooperativa. Diferentemente dos "atos não cooperados", que envolvem transações com terceiros e que estão sujeitos à recuperação judicial, os atos cooperados representam operações econômicas que buscam promover o bem-estar dos associados, fortalecendo a mutualidade e a interdependência características desse modelo de negócio.
Patrimônio de afetação: Embora a Lei 11.101/2005 tenha previsto a exclusão dos créditos integrantes do patrimônio de afetação somente em relação a falência da empresa incorporadora (Art. 119, IX), a submissão destes aos efeitos da recuperação judicial é totalmente incompatível com as determinações previstas pela Lei de incorporação Imobiliária – Lei 4.591/64. A criação do patrimônio de afetação visa delimitar os riscos associados a cada empreendimento, resultando na perda de controle da incorporadora sobre os ativos e passivos afetados. Assim, quando uma incorporadora solicita recuperação judicial, os empreendimentos constituídos sob o regime de patrimônio de afetação operam de forma independente, sem que seus ativos sejam utilizados para o processo de recuperação nem que seus passivos sejam afetados por ele.
Créditos de representantes comerciais: Com a alteração promovida em 2021 no Art. 44 da Lei 4.886/1965, que regulamenta as atividades dos representantes comerciais, os créditos desses profissionais, quando decorrentes de sentença judicial transitada em julgado após o deferimento do processamento da recuperação judicial, foram excluídos do âmbito da recuperação, mesmo que tais créditos tenham origem em fatos ocorridos em período anterior. Essa alteração legislativa revela-se conflitante com as disposições da Lei 11.101/2005, que regula a recuperação judicial e falências. A constitucionalidade da referida norma está sendo contestada pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 7054, cujo julgamento ainda está pendente no Supremo Tribunal Federal (STF).
Créditos fiscais: Os créditos de natureza fiscal não se submetem aos efeitos da Recuperação Judicial. Com efeito, o art. 29 da Lei nº 6.830/80 (Lei de Execuções Fiscais) dispõe de forma categórica que a cobrança da dívida ativa da Fazenda Pública não se sujeita ao regime recuperacional, permanecendo sob a competência exclusiva da execução fiscal. Importante frisar que tais créditos não se restringem aos tributos, abrangendo igualmente débitos de outra natureza perante a Fazenda Pública, como multas administrativas e demais obrigações não tributárias. Ademais, o art. 6º, §7º, da Lei nº 11.101/2005 reforça a autonomia da execução fiscal ao estabelecer que sua tramitação não se suspende em razão do deferimento da recuperação judicial, evidenciando a completa independência desses créditos em relação ao procedimento de soerguimento empresarial (2).
Exceções específicas da atividade rural: A Lei 14.112/2020 reconheceu o direito do produtor rural de requerer recuperação judicial, mas estabeleceu exclusões específicas relacionadas à atividade agropecuária. Entre elas, destacam-se: dívidas de crédito rural oficial já renegociadas antes do pedido; operações não vinculadas diretamente à atividade rural ou sem registro formal; financiamentos destinados à aquisição de propriedades rurais nos três anos anteriores ao pedido; e Cédulas de Produto Rural (CPR) com liquidação física (3).
Apreensão ou retirada de bens de capital essenciais a atividade da empresa em recuperação judicial: Nas operações acima elencadas que possuem bens em garantia e que não se sujeitam aos efeitos da recuperação judicial, havendo inadimplência, abre-se a possibilidade dos credores realizarem a apreensão ou a retirada dos bens dados em garantia da posse do devedor. No entanto, caso os bens oferecidos como garantia sejam classificados como essenciais para a continuidade das atividades da empresa em recuperação judicial, eles não poderão ser removidos da posse do devedor durante o chamado "stay period". Esse período de proteção dura inicialmente 180 dias a partir da data do deferimento do processamento da recuperação judicial, com a possibilidade de prorrogação por mais 180 dias.
A Lei 11.101/2005, projetada para garantir a continuidade das operações de empresas em crise, enfrenta grandes desafios em sua aplicabilidade devido à extensão de suas exceções que excluem um número significativo de credores dos efeitos da recuperação judicial. Trata-se de uma situação que não só limita a eficácia do mecanismo legal como também pode, em muitos casos, inviabilizar o próprio objetivo da legislação. Cada uma dessas exceções será detalhadamente examinada em tópico específico, a fim de esclarecer seus fundamentos e impactos práticos (3).
Especificamente em relação a empréstimos e financiamentos bancários, tornou-se praxe atual a inclusão de cláusulas como a cessão fiduciária de recebíveis ou a alienação fiduciária de bens. Esta prática generalizada assegura que as instituições financeiras sejam quase totalmente imunes aos impactos da recuperação judicial, o que reduz, de forma substancial, a efetiva possibilidade de empresas em crise reorganizarem suas finanças. Ou seja, o que temos hoje é um verdadeiro paradoxo legal onde, ao se esforçar para equilibrar e proteger direitos e interesses, a lei acaba comprometendo sua própria finalidade essencial.
Citações, enunciados, jurisprudência e artigos sobre o tema
Enunciado 628 - VIII Jornada de Direito Civil
Os patrimônios de afetação não se submetem aos efeitos de recuperação judicial da sociedade instituidora e prosseguirão sua atividade com autonomia e incomunicáveis em relação ao seu patrimônio geral, aos demais patrimônios de afetação por ela constituídos e ao plano de recuperação até que extintos, nos termos da legislação respectiva, quando seu resultado patrimonial, positivo ou negativo, será incorporado ao patrimônio geral da sociedade instituidora.
Enunciado 99 - III Jornada de Direito Comercial
Para fins de aplicação da parte final do art. 49, § 3º, da Lei n. 11.101/2005, é do devedor o ônus da prova da essencialidade do bem.
Enunciado 01 - 2º Congresso Nacional do Fonaref
Incumbe ao juízo da recuperação judicial, quando provocado, o reconhecimento da essencialidade do bem de capital, mediante análise das circunstâncias do caso.
Legislação aplicável ao tema:
Lei 11.101/2005
Art. 6º A decretação da falência ou o deferimento do processamento da recuperação judicial implica:
§ 4º Na recuperação judicial, as suspensões e a proibição de que tratam os incisos I, II e III do caput deste artigo perdurarão pelo prazo de 180 (cento e oitenta) dias, contado do deferimento do processamento da recuperação, prorrogável por igual período, uma única vez, em caráter excepcional, desde que o devedor não haja concorrido com a superação do lapso temporal.
§ 13. Não se sujeitam aos efeitos da recuperação judicial os contratos e obrigações decorrentes dos atos cooperativos praticados pelas sociedades cooperativas com seus cooperados, na forma do art. 79 da Lei nº 5.764, de 16 de dezembro de 1971, consequentemente, não se aplicando a vedação contida no inciso II do art. 2º quando a sociedade operadora de plano de assistência à saúde for cooperativa médica.
Art. 49. Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos.
§ 3º Tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva, não se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4º do art. 6º desta Lei, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial.
§ 4º Não se sujeitará aos efeitos da recuperação judicial a importância a que se refere o inciso II do art. 86 desta Lei.
Art. 86. Proceder-se-á à restituição em dinheiro:
II – da importância entregue ao devedor, em moeda corrente nacional, decorrente de adiantamento a contrato de câmbio para exportação, na forma do art. 75, §§ 3º e 4º, da Lei nº 4.728, de 14 de julho de 1965, desde que o prazo total da operação, inclusive eventuais prorrogações, não exceda o previsto nas normas específicas da autoridade competente;
Art. 119. Nas relações contratuais a seguir mencionadas prevalecerão as seguintes regras:
IX – os patrimônios de afetação, constituídos para cumprimento de destinação específica, obedecerão ao disposto na legislação respectiva, permanecendo seus bens, direitos e obrigações separados dos do falido até o advento do respectivo termo ou até o cumprimento de sua finalidade, ocasião em que o administrador judicial arrecadará o saldo a favor da massa falida ou inscreverá na classe própria o crédito que contra ela remanescer.
Lei 5.764/1971
Art. 79. Denominam-se atos cooperativos os praticados entre as cooperativas e seus associados, entre estes e aquelas e pelas cooperativas entre si quando associados, para a consecução dos objetivos sociais.
Parágrafo único. O ato cooperativo não implica operação de mercado, nem contrato de compra e venda de produto ou mercadoria.
Lei 4.886/1965
Art. 44. No caso de falência ou de recuperação judicial do representado, as importâncias por ele devidas ao representante comercial, relacionadas com a representação, inclusive comissões vencidas e vincendas, indenização e aviso prévio, e qualquer outra verba devida ao representante oriunda da relação estabelecida com base nesta Lei, serão consideradas créditos da mesma natureza dos créditos trabalhistas para fins de inclusão no pedido de falência ou plano de recuperação judicial.
Parágrafo único. Os créditos devidos ao representante comercial reconhecidos em título executivo judicial transitado em julgado após o deferimento do processamento da recuperação judicial, e a sua respectiva execução, inclusive quanto aos honorários advocatícios, não se sujeitarão à recuperação judicial, aos seus efeitos e à competência do juízo da recuperação, ainda que existentes na data do pedido, e prescreverá em 5 (cinco) anos a ação do representante comercial para pleitear a retribuição que lhe é devida e os demais direitos garantidos por esta Lei.
Lei 6.830/80 - Lei das Execuções Fiscais
Art. 29 - A cobrança judicial da Dívida Ativa da Fazenda Pública não é sujeita a concurso de credores ou habilitação em falência, concordata, liquidação, inventário ou arrolamento.
Parágrafo Único - O concurso de preferência somente se verifica entre pessoas jurídicas de direito público, na seguinte ordem:
I - União e suas autarquias;
II - Estados, Distrito Federal e Territórios e suas autarquias, conjuntamente e pro rata;
III - Municípios e suas autarquias, conjuntamente e pro rata.
